sábado, 17 de setembro de 2011

Analfabeta

            Eram cinco horas da manhã.
            Acordou cedo e, pulando um dos filhos que dormia no chão aos pés da cama, foi para o outro cômodo do barraco fazer café.
            Voltou para acordar a filha Vera Lúcia que dormia profundo, mas que precisava acordar cedo, pois, o Shopping Plaza Osasco, onde trabalhava, ficava a dois ônibus e um metrô de distância. Muito longe, portanto.
            Maria da Conceição da Silva, cinqüenta e quatro anos, analfabeta, era mulher sacudida, peitos espaçosos, de cor negra, dentes ilesos e alvos. Morava em Itaquera, num barraco firme, com seus sete filhos e o querido marido José, que por sinal acabava de chegar do trabalho de vigia noturno.
           Com um “Bença mãe e um Deus te abençoe filha”, Vera Lúcia despediu-se, ainda com uma bolacha na boca, o seu café-da-manhã. Realmente. Deus a teria de abençoar demais naquele dia.
Maria da Conceição tinha que correr para deixar o almoço pronto e partir para o seu trabalho de faxineira, numa agência de viagens no centro de Osasco.
            Dizem que notícia ruim sempre corre depressa e Maria da Conceição foi uma das primeiras a saber que no shopping onde trabalhava a filha, houve uma grave explosão de gás.
            Não tirou o uniforme, não pediu licença, não avisou ninguém e bateu em retirada, pois o seu coração de mãe ordenava que fosse ver a filha, onde ela estivesse. Correndo desesperada pelas ruas de Osasco, ouvia dizer de centenas de mortos e feridos. Ambulâncias, helicópteros, carros de polícia, bombeiros, tudo se misturava nos olhos da pobre mulher.
           Parou a uma certa distância e viu a cena medonha do desabamento, dos destroços, da destruição; ela nunca mais conseguiria esquecer o que presenciava. “Deus faz e não explica”, sussurrou.
           Parada, boquiaberta, confusa nem percebeu estar justamente no caminho que levava a uma ambulância ali perto estacionada. Por circunstâncias que ninguém explica uma velha maca conduzida por dois bombeiros, teve que parar bem em sua frente.
- Vera Lúcia, Vera Lúcia minha filha, - gritou ela, estendendo as duas mãos, como querendo adivinhar quem estava lá dentro.
- Não é Vera Lúcia, dona, este é um homem e está morto. – Respondeu-lhe apressadamente um dos homens. Para saber quem está vivo ou morto vá até o Hospital Municipal que lá eles darão notícias.
           Veio-lhe a certeza de que sua filha havia morrido.
           Maria recuou na calçada o suficiente para encostar-se, amparou a nuca na parede, fitou o céu azul e sentiu o chão faltar-lhe aos pés. A perna direita amoleceu e ela se firmou somente na esquerda, tombando levemente o corpo. Não conseguia pensar e já não sabia mais onde estava, em que rua, em que bairro, em que cidade, em que país. Parecia então que não existia. Não posso garantir, mas tenho a certeza de que Maria da Conceição, por alguns segundos, experienciou o nada, isto é, a morte. Mas Deus dá o frio conforme o cobertor e ela acionou suas forças internas, aprumou-se, enxugou as lágrimas e zarpou em direção ao hospital. Lá chegando, com a inocência de uma criança, perguntava a todos se alguém tinha visto a sua Vera Lúcia, ao que evidentemente, não obtinha resposta alguma. Um senhor aproximou-se e, entre amoroso e apressado, disse-lhe que havia duas listas pregadas na parede, uma dos mortos, outra dos vivos e que ela fosse procurar pela sua filha. Com muita dificuldade e igual empurra-empurra, soletrando rezas aproximou-se das listas. Se por um lado esquecia-se que era analfabeta, por outro confiava nela própria, pois o que sabia ler na vida era unicamente os nomes dos sete filhos e do marido.
          Aproximou-se e leu assim:

          Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
          Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
          Vera Lúcia da Conceição da Silva
          Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
          Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

          Leu o nome da filha. Pronto, é o que mais queria na vida. Sim, estava lá. Ela a encontrara.
Porém, novamente sentiu um frio, uma horrível dor de barriga e incontroláveis arrepios na pele. O ar lhe faltava, a vista escurecia e ela já não ouvia. O nome da filha, em que lista estaria? Na dos vivos ou na dos Mortos? Meu Deus, isso ela não sabia ler.
         Novamente aproximou-se das listas com o peito apertado, como se um pomo-de-adão estivesse a asfixiar-lhe a garganta seca. Os lábios tinham aquela gosma branca de quando se fala muito ou se tem um ataque epiléptico.
         Conseguiu agarrar o braço de um homem que estava ao seu lado e sem poder falar olhou profundamente em seus olhos. Levando-o bem perto das listas seguiu com o dedo indicador até o princípio das palavras que lá estavam escritas e sublinhou fortemente embaixo delas. Como na hora do desespero as pessoas se entendem pelo olhar e pelos gestos, o homem compreendendo tudo gritou em seu ouvido: lista dos vivos. Maria da Conceição, a analfabeta que sabia ler com o coração desmaiou e só acordou horas depois. 

(Paulo Afonso Caruso Ronca)

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